Educação para o lucro, educação para a disciplina e educação para a democracia:
Uma breve reflexão sobre os caminhos adotados na educação recente do Brasil
Fernando Oliveira Queiroz Ferreira
Professor de História graduado no Centro Universitário Fundação de Ensino Octávio Bastos, pós graduando em ensino de humanidades pelo IFSULDEMINAS campus Passos
E-mail: fernandooqferreira@hotmail.com
RESUMO:
Neste estudo pretende-se lançar olhares sobre os caminhos recentes que o Brasil tem trilhado na educação pública e suas perspectivas no âmbito temático: “Educação para o lucro, educação para a disciplina e educação para a democracia”. As referências que serão utilizadas neste artigo ressaltam a importância das ideias e conceitos elaborados por dois professores excepcionais que contribuíram imensamente para pensar este tema: John Dewey, um filósofo e pedagogista norte-americano, um dos principais representantes da corrente pragmatista que também escreveu extensivamente sobre pedagogia, onde é uma referência no campo da educação moderna. E, fundamentalmente as reflexões de Martha Craven Nussbaum, filósofa estadunidense particularmente interessada em filosofia greco-romana, filosofia política e ética, uma das mais importantes filósofas dos Estados Unidos. Nussbaum pensou e escreveu uma obra indispensável para refletirmos sobre o papel das ciências humanas na educação: “Sem fins lucrativos: Por que a democracia precisa das humanidades”, do qual discorreu sobre a importância das artes e humanidades e seu papel na formação crítica dos indivíduos inseridos em um contexto capitalista, onde a tendência é valorizar uma formação utilitária voltada para o crescimento econômico. É neste sentido que se fazem as análises críticas de Nussbaum que auxiliarão a direção argumentativa desta escrita, buscando refletir sobre estes conceitos no contexto atual nacional.
PALAVRAS CHAVES: EDUCAÇÃO; DEMOCRACIA; BRASIL.
INTRODUÇÃO:
A partir do final do século XIX John Dewey passou a repensar os moldes tradicionais da educação, introduzindo o conceito de democracia e liberdade intelectual na formação crítica dos cidadãos inseridos em uma cultura escolar. Proporcionando desde então, a disseminação de suas ideias a novos debates teóricos de inúmeros pesquisadores subsequentes ao redor do mundo que dedicaram sua vida profissional na reflexão e análises da educação pública. Sob a ótica de Martha Nussbaum (2015) para pensarmos em uma educação que constrói uma cidadania democrática, temos que pensar sobre o que são as nações democráticas e pelo que elas lutam. Neste contexto, o que significa então, para um país progredir? Sob a reflexão dos conceitos elaborados pelos acadêmicos mencionados, pretende-se refletir sob a direção trilhada no âmbito das políticas públicas adotadas recentemente na educação do Brasil. Temos andado em direção à uma escola que propicie elementos construtivos para uma educação democrática?
Educação para o lucro, educação para a disciplina e educação para a democracia:
Uma breve reflexão sobre os caminhos adotados na educação recente do Brasil
No campo das decisões educacionais é possível identificarmos diferentes estratégias de execução ao redor do mundo, mas quão distante está a vontade política e popular em relação aos debates acadêmicos?
Na perspectiva de Nussbaum (2015, pg 3) “Estamos em meio a uma crise de enormes proporções e de grave significado global [...] uma crise mundial da educação”. Através de suas pesquisas e análises a autora aponta que a democracia corre perigo pelo fato de que os governantes mundiais estão sendo omissos em relação a formação crítica e humanística de seus cidadãos em detrimento de um desenvolvimento que visa apenas as questões econômicas dos países:
“Consideradas pelos administradores públicos como enfeites inúteis (as artes e humanidades), num momento em que as nações precisam eliminar todos os elementos inúteis para se manterem competitivas no mercado global, elas estão perdendo rapidamente seu lugar nos currículos e, além disso, nas mentes e nos corações dos pais e dos filhos” (NUSSBAUM, 2015, pg 4)
Esta fala é extremamente pertinente ao momento atual, inclusive no Brasil onde observamos a condução das políticas educacionais voltadas à uma formação tecnicista, por exemplo o novo ensino médio torna as disciplinas de ciências humanas não obrigatórias, favorecendo um ensino voltado ao trabalho laboral, apenas. Portanto, excluindo a capacidade analítica dos alunos sob os fatos políticos e sociais presentes na sociedade que exigem uma interpretação humanística. Vale lembrar também que, tal reforma não será aderida (ao menos inicialmente) por escolas particulares “Nenhum sistema educacional funciona bem se seus benefícios só alcançam as elites abastadas. O acesso a um ensino de qualidade é uma questão premente em todas as democracias modernas.” (NUSSBAUM, 2015, pg 12) E ainda:
“[...] parece que estamos nos esquecendo da alma, do que significa para a mente abrir a alma e ligar a pessoa com o mundo de modo rico, sutil e complexo; do que significa aproximar-se de outra pessoa como uma alma, em que vez de fazê-lo como um simples instrumento útil ou um obstáculo aos seus próprios projetos; do que significa conversar, como alguém que possui alma, com outra pessoa que consideramos igualmente profunda e complexa.” (NUSSBAUM, 2015, pg 7)
Alma significa a capacidade de pensar e de imaginar o que nos torna humanos e que torna nossas relações humanas e ricas, em vez de relações meramente utilitárias e manipuladoras (NUSSBAUM, 2015, pg 7). Em um contexto de regimes democráticos, tais percepções são indispensáveis para a manutenção de ideais inclusivos, que proporcionem o entendimento do outro, das diferenças inerentes aos relacionamentos humanos. Ou seja, como compreender diversos pontos de vista sem um olhar que abarque as diferentes visões de mundo e culturas presentes em um mesmo espaço? Me parece fundamental o papel das artes e das ciências humanas na construção de uma educação crítica e emancipadora.
A integração mundial dos mercados e o lucro advindo do comércio exterior são preocupações legítimas da política, afinal o bem estar econômico é um dos fatores que propiciam o desenvolvimento e acesso aos bens materiais. “A educação não é útil apenas para a cidadania. Ela prepara as pessoas para o trabalho e, o que é fundamental, para uma vida que tenha sentido.” (NUSSBAUM, 2015, Pág. 10) No entanto, o progresso econômico depende também da criatividade dos atores sociais que compõe a força de trabalho das indústrias, comércio e outros setores que exigem soluções inovadoras para novos problemas. Afinal “O interesse nacional de qualquer democracia moderna exige uma economia sólida e uma cultura empresarial próspera” (NUSSBAUM, 2015, pág.11) e mais:
“Não devemos ser contra a ciência de qualidade e a educação técnica, e não estou sugerindo que os países devam parar de progredir nessa área. Minha preocupação é que outras competências, igualmente decisivas, correm o risco de se perder no alvoroço competitivo; competências decisivas para o bem-estar interno de qualquer democracia e para a criação de uma cultura mundial generosa, capaz te tratar, de maneira construtiva, dos problemas mais prementes do mundo.” (NUSSBAUM, 2015, pg 8)
Nussbaum lança seus olhares especialmente em instituições de ensino pois “[...] O foco em escolas, faculdades e universidades porque é nessas instituições que as transformações mais perniciosas têm ocorrido, à medida que a pressão pelo crescimento econômico leva mudanças no currículo, no ensino e no financiamento” (2015 pg 10). Refletindo sobre o contexto nacional, fica evidente que caminhamos na contramão do livre pensamento. Iniciativas como a militarização das escolas tem ganhado força nos círculos políticos e até mesmo entre a população. O discurso de implementação dos modelos cívico militares é fortalecido na medida em que a percepção da comunidade em relação a violência aumenta, em uma visão deturpada e simplória de que a solução dos problemas seja exclusivamente uma questão disciplinar:
“Entendamos que a disciplina não deve ser condenada como vilã da história ou o mal da sociedade e da educação, porém também não é a sua salvação. A disciplina possui diversas facetas e existem diversos ângulos de visão para entendermos o que venha a ser disciplina.” (CRUZ, 2017, pg 92)
Aos olhares mais atentos, obtêm-se exemplos sistematicamente analisados que demonstram o contrário:
“Os grandes diferenciais dos Colégios Militares, propagados pela mídia, pelo governador do Estado de Goiás e pela sociedade, se referem principalmente à disciplina dos alunos, aos “bons” índices de aprovação em vestibulares, à estrutura física e à hipotética garantia de segurança para os alunos e funcionários da escola, mas disso surgem muitos questionamentos e controvérsias, pois, se tratando de disciplina, a forma de consegui-la e os meios de sua manutenção, será que a disciplina exigida nesses colégios contribui realmente para a formação de um indivíduo autônomo, crítico e solidário? Fica a dúvida, contudo, as consequências podem aparecer tardiamente, na vida pessoal, intelectual e social desses alunos. A disciplina é mantida com base no Regimento Disciplinar e por meio de suas punições, caso sejam necessárias.” (CRUZ, 2017, pg 86/87)
Cruz reforça (2017, pg 92) “A visão de disciplina propagada pelos colégios militares é antagônica à disciplina realmente necessária para se garantir um processo de ensino e aprendizagem de qualidade, já que a disciplina propagada pelos colégios militares se iguala a de um quartel.”.
Para Dewey o clima social da escola deve ser democrático e cooperativo, o professor é uma figura orientadora e não autoritária, conforme acontece dentre de uma cultura militar baseada na hierarquia, do padrão “Eu mando você obedece sem questionar”. Dewey defende que o processo de ensino/aprendizagem para ser efetivo deve fazer sentido para o aluno.
Segundo Nussbaum (2015, pg 11) “um modo de avaliar qualquer sistema educacional é perguntar quão bem ele prepara jovens para viver numa forma de organização social e política com essas características (De diálogo com o outro). Sem apoio de cidadãos adequadamente educados, nenhuma democracia consegue permanecer estável”. Para Dewey a democracia é um modo de viver, sendo necessário fomentar uma cultura democrática e uma cultura de liberdade em diferentes instituições, entre elas a escola. Ao verificarmos alguns dos problemas educacionais brasileiros, é possível observar descaso, falta de prioridade política na implementação de práticas e metodologias já observadas em diferentes países (e também em estados brasileiros como Ceará e Maranhão[1]), que nada tem a ver com a militarização da educação, bem como a não disponibilização de recursos necessários para a execução das mesmas. De modo que o ensino cívico militar se faz algo paliativo e pouco faz para resolver questões estruturais. Neste sentido Cruz ressalta (2017, pg 154): “A escola deve ser um ambiente democrático, ao invés de simplesmente impor regras e penalidades aos alunos, os cerceando e os coibindo de usufruírem dos seus direitos de participar.”
Para pensarmos na construção de uma educação inclusiva e construtora de cidadania, se faz necessário refletir sobre como concebemos o progresso de uma nação e de seus valores democráticos. Os fatores de produção e alavancamento econômico são demonstrativos de progresso na percepção de alguns estudiosos, no entanto, ao olharmos alguns exemplos internacionais observamos que o crescimento econômico não constrói, necessariamente, o bem estar social, distribuição de renda e qualidade de vida:
“[...] a África do sul costumava ocupar o topo dos índices de desenvolvimento. A Antiga África do sul era muito rica, e o antigo modelo de desenvolvimento premiava essa proeza, ignorando as inacreditáveis desigualdades distributivas, o brutal regime do apartheid e as deficiências em saúde e educação que o acompanhavam.” (NUSSBAUM, 2015, PG 14)
E também: “A liberdade política não é um indicador de crescimento, como podemos ver pelo estonteante sucesso da China, produzir crescimento econômico não significa produzir democracia.” (NUSSBAUM,2015, pg 15) Mesmo assim, a tendência continua a valorizar o PIB como medidor de progresso, direcionando os currículos escolares no sentido de capacitar pessoas que produzam capital financeiro. “[...] um esboço do que seria essa educação. Ele está sendo aplicado por muitas nações europeias, que conferem notas altas a universidades técnicas e a departamentos técnicos de universidades e impõe cortes draconianos às humanidades.“ (NUSSBAUM, 2015, pg 16) Em contrapartida, os EUA, maior economia mundial (coincidentemente) , mesmo sofrendo pressões na inclusão de ciências humanas nos bancos e currículos escolares, permanece valorizando as artes liberais como base para sua educação: “Essa tradição defende que a educação não significa apenas assimilar passivamente as tradições culturais, mas desafiar a mente para que, em um mundo complexo, ela se torne ativa, competente e cuidadosamente crítica.” (NUSSBAUM, 2015, pg 18).
Desta maneira podemos deduzir que a produção de capital de um país não está necessariamente vinculada a construção de uma educação democrática e nem mesmo igualdade de condições, sendo esse um dos maiores problemas de se medir o desenvolvimento somente pelo quesito financeiro: “[...] um país pode muito bem crescer enquanto os camponeses pobres continuam analfabetos e sem dispor dos recursos básicos [...] como demonstram os acontecimentos recentes em muitos estados indianos” (NUSSBAUM, 2015, pg 18). Ressaltando que:
“Modelos puros de educação para o desenvolvimento econômico são difíceis de encontrar em democracias solidas, uma vez que a democracia se baseia no respeito a cada pessoa e o modelo de crescimento só respeita o conjunto. Não obstante, os sistemas educacionais estão se aproximando cada vez mais do modelo de crescimento, sem se importar muito com sua inadaptabilidade aos objetivos da democracia.” (NUSSBAUM, 2015 pg 24)
Por outro lado, ao observarmos os efeitos de uma educação que valoriza o desenvolvimento humano como um todo, e que permitam que criticidade se desenvolva, os benefícios inerentes a está decisão política se traduzem, inclusive, na questão financeira. “Um país decente reconhece, no mínimo, que seus cidadãos possuem direitos nessas (desenvolvimento humano) e outras áreas e cria estratégias para fazer com que as pessoas fiquem acima do patamar mínimo de oportunidade em cada uma delas” (NUSSBAUM, 2015, pg 24)
A experiência educativa pra Dewey deve ser a mesma para a experiência democrática, sendo fundamentalmente uma coisa que nos permite nos aprofundar e alargar quem somos no mundo e como o mundo é, portanto, para uma experiência ser genuinamente educativa, ela precisa possibilitar que o sujeito tenha novas possibilidades de experiências ao invés de restringi-las. Outro conceito importante para Dewey é o interesse, que funciona como uma ponte, um caminho entre dois pontos. Logo, quando ele defende que o professor se ocupe do interesse do aluno, ele não está dizendo pra si para que o professor se limite aquele interesse (estritamente conteudista), mas para que o professor, a partir do interesse do aluno consiga chegar num propósito mais elaborado e original, ao qual ele queira conduzir o estudante, então o que ele entende como uma educação democrática, na verdade uma educação para a democracia, e para isso acontecer, fundamentalmente, ela é marcada pela promoção de uma cultura escolar que assegure valores democráticos, pois uma escola ainda que de referência nos estudos conteudistas, não garante uma ética democrática dentro da escola, de modo que as relações devem estar pautadas na alteridade. Diminuindo essa lacuna entre professor e aluno. Esses princípios devem nortear nossas práticas pedagógicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como levantado pelos especialistas mencionados, uma educação alimentada pelas artes e humanidades são de suma importância para criar um terreno favorável aos regimes democráticos, imprescindível para alcançar valores que contribuam para uma sociedade criativa e próspera. Seja no sentido de bem estar social ou econômico, que inclusive são indissociáveis pois um ambiente que respeite e valorize as diferenças é indispensável para pensar em novas soluções para questões e problemas que afligem um país. Neste sentido, observamos que as recentes iniciativas educacionais adotadas no Brasil se distanciam desta busca por uma educação democrática. A reformulação do ensino médio que dispensa as humanidades como disciplinas obrigatórias vão na contramão do que aqui foi apresentado como essencial para a construção de um ensino que forme cidadãos críticos. Assim como a crescente onda de militarização das escolas que não contribuem na formação do livre pensar e coíbem uma formação para a autonomia intelectual.
[1] Ambos estados com uma economia precária, porém possuem altos índices na qualidade do ensino público. Dentre as várias ações tomadas para o desenvolvimento educacional, podemos citar a valorização da carreira profissional dos educadores e escolas com tempo integral, disponibilizando inclusive acesso a teatro, esportes e assistência a saúde mental dos alunos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CUNHA, Marcos Vinicius. John Dewey: a utopia democrática. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
CRUZ, Leandra. Militarização das escolas públicas em Goiás: Disciplina ou Medo. Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História, Goiânia, 2017
NUSSBAUM, Marta C. Sem fins lucrativos: Por que a democracia precisa das humanidades. Tradução Fernando Santos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2015
DEWEY, John. Democracia e Educação. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.
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